“Um telefone ao alcance da mão, um número decorado na cabeça e uma aflição no coração. É aí que mora o perigo…”
[Martha Medeiros]
- Alô!
- Alô, Samira?
- Sim, com quem eu falo?
- Ah, vai dizer que você já me esqueceu?
- Quem está falando, por favor? – e a jovem começou a se incomodar.
- Ah, então você já está esquecida das promessas que me fez na laje aqui de casa? E do que fizemos no quartinho dos fundos, às quatro da manhã no último fim de semana?
A voz do outro lado da linha, além de sussurrante e sedutora, era de Eduardo, o amante. Rapaz pobre. Mas paupérrimo para o status atual de Samira. Tinham dado uma às quatro da manhã, mas foi tão rápida que Eduardo só relembrou Samira porque ela tinha, no dia, elogiado muito sua performance e pelo horário que tinha acontecido – nunca tinha comido ninguém às quatro da manhã, no quartinho dos fundos. Samira até estava com saudades do cafajeste, mas não ousaria trocar seu casamento estável com o médico mais procurado da cidade - idoso, mas milionário -, Átila Andrade Martins. Para uma jovem de 22 anos como ela, trocar a alta sociedade para morar na baixada, viver fritando ovo e rodeada de pivetes lhe puxando as saias era um desaforo. Passar a assinar “Pereira e Silva”, ao invés de “Andrade Martins”, era, simplesmente, fora de suas hipóteses.
- Que ousadia! Já lhe disse que você não deve ligar aqui, seu imbecil!
- Isso, me xinga! Quanto mais bate, mais eu gamo, meu pitel!
- Seu inconseqüente! Você sabe que essa casa é cheia de empregados, telefones espalhados por todos os cantos. Sem contar que o Átila, meu marido, um homem de verdade, pode chegar a qualquer momento e não gostaria de me ver aos cochichos no telefone.
- Só liguei pra saber quando vamos nos encontrar de novo... – provocou o michê.
- Se depender de mim, nunca mais! – disse querendo dizer: “Agora mesmo!”.
Os dois nasceram na mesma vila. Foram criados juntos e, por conseqüência, namoraram na mocidade. De fato, Eduardo punha Samira à loucura enquanto estavam à sós. Tanto que, quando longe, a menina subia pelas paredes. Mas sua vida tinha dado uma guinada após conhecer o médico ricaço que fez questão de nunca mais por os pés naquele “pulgueiro”. Desconhecia suas origens e negava qualquer aproximação com aquela “raça”. A bem da verdade, Samira morria de saudades de Eduardo e só de ouvir a sua voz arrepiava-se toda. E, dessa vez, não foi diferente, embora soubesse que precisaria manter a pose de durona.
- Me diz quando você vai fazer daquele jeitinho que eu gosto? – insistiu o rapaz.
- Dudu... – disse dengosa, mas logo se recompondo – Quer dizer, Eduardo! Já disse que entre mim e você não há nenhuma possibilidade. Nós já estamos em mundos muito diferentes, nossa história já deu o que tinha que dar.
- Acontece, chuchu, que só você tem aquele swing, tá ligado? Eu fico louco só de pensar no que nós dois podemos fazer juntos... – Mentira! Eduardo, na verdade, gostava era de pegar a mulherada e, nesse exato momento, a única da lista era Samira, mesmo sabendo que, no mais íntimo de seus sentimentos, era ela a mulher de sua vida. Mas foi aquela simples frase que seduziu Samira.
Encontraram-se na mesma noite, num motelzinho chinfrim no mesmo bairro onde Eduardo morava que, além de ser o que ambos mais freqüentaram, tinha um fetiche de simplicidade para Samira. Passaram a semana toda se telefonando, mas dessa vez Samira foi mais precisa e não deu novas oportunidades ao garoto. Contudo, morria de desejos pelo cretino, que, por sua vez, não deixou de ligar:
- Só mais uma vez! Vou te esperar hoje à noite, combinado?
- Eduardo, já lhe disse que não! Sou uma dama da alta sociedade, não posso me envolver com você, um pé-rapado, que não tem onde cair morto. Vai se enxergar!
E Eduardo, sem ter chances de insistir uma última vez, só ouviu o tu-tu-tu do telefone. Daquele dia em diante, decidiu que não mais correria atrás. Sabia que, por mais vagabunda que fosse, tinha mudado. Apagou o número de Samira de sua agenda e optou por fazer a sua vida, tentando esquecer aquela que, por pior que fosse, tinha nascido para ser dele.
Após muitos anos de afastamento terem se passado, Eduardo, então o pobretão, pé-rapado, que não tinha onde cair morto – adjetivos da própria Samira -, torna-se o milionário mais bem sucedido de toda a cidade. E, mesmo com saudades da namorada safadinha da adolescência, havia constituído uma família tão bonita que dispensava flashbacks daquela história de juventude.
Do lado de lá, o então solidificado casamento de Samira viria a se desfazer com a morte de Átila. Não bastasse a perda daquele que sustentava todos os seus luxos, Samira viu seu palácio transformar-se num castelo de areia. No testamento, Dr. Átila deixava à Samira somente um par de meias sujas (para que pudesse lembrar de seu cheiro mais pitoresco). Detalhe: Samira havia tentado engravidar e, já grávida, descobriu, ao contar para o velho que seria pai, que este era vasectomisado e, se fazendo de idiota, aceitou aquela mentira até que Samira, meses mais tarde, perdesse a criança. Ainda no testamento, Átila registrou sua “vingança” contra Samira: deixava uma tia idosa, caduca e em péssimas moradias para que esta ficasse sob seus cuidados. Lógico que era um deboche desaforado que, para a alegria dos outros filhos do velho surtiu como uma grande comédia.
Sem saída, a alpinista social então percebe que não conseguirá viver sem suas vaidades e, como forma de conseguir recursos financeiros de forma ágil, decide optar ao que Raquel Pacheco – sim, a Bruna Surfistinha – chama de uma “difícil vida fácil” e torna-se garota de programa, embora saiba que sucesso mesmo só tinha ao lado do falecido.
Mesmo sem receber um tostão com a morte do marido, Samira decide procurar um bom advogado para tentar reverter sua situação que já estava ficando bem pior que os seus antigos vizinhos. Nessa busca incessante, um cartão muito elegante lhe cai sobre as mãos. Nele, lia-se apenas o nome “Dr. Eduardo P. Silva” e um número de telefone celular que reconhecia de algum lugar, embora não recordasse naquele momento.
Determinação, sofisticação e competência eram os traços que mais despertavam no novo Eduardo, que, agora, só atendia solicitação se seu nome viesse acompanhado por Dr. Durante uma folheada e outra no jornal, Dr. Eduardo, então se pega nas páginas dos “Classificados” e um nome bastante sugestivo, “Mimi”, lhe chama atenção. Pára e decide ver do que se trata: “Morena, alta, seios fartos, faz tudo e cobra pouco”. Incrédulo, reconhece o número que finaliza o anúncio e um suor gélido lhe escorre sobre a face. Sabia que as coisas haviam degringolado muito depois da morte de Átila, já que o noticiário cobriu a morte do famoso médico da cidade. Mas, orgulho ferido de homem esnobado fala mais alto em qualquer situação e foi por este motivo que não se reaproximou da mercenária naqueles momentos.
Mas, com o anúncio do jornal nas mãos, deixou-o cair sobre seu peito e, por um instante fechou os seus olhos como se estivesse sonhando. Nesse momento, lembrou aquela noite inesquecível no quartinho dos fundos. Aquela noite que, por menos prazer que tivesse sentido, ficou marcada para sempre. Não hesitou em ligar.
No mesmo momento, Samira, agora “Mimi”, discou os números quase instintivamente. Enquanto esperava a ligação se completar, reconheceu que aquele telefone era do seu amante e, nesse tempo todo, não poderia negar, muito menos agora, que sentia sua falta, falta do toque, da pele, do beijo, do sexo.
Mas, para a surpresa de ambos, a chamada cai na caixa postal. Ele desiste e volta-se para o trabalho exigindo concentração de si mesmo:
- Foco, Dr. Foco!
Com sua vida profissional muito bem sucedida, a história de seu passado havia ficado pra trás como uma boa recordação. Sua nova família, alicerçada em muito amor e confiança, lhe dava todo o carinho que foi desprezado por Samira, a Mimi.
Mas, do outro lado, a tara de Samira grita alto dentro de si. É como uma chama acesa que ardia e a fazia delirar de tanta paixão. Não pensou duas vezes e, naquele mundinho cafona que havia se transformado, o telefone chamou. Chamou uma, chamou duas vezes.
E, depois daquele dia, só Eduardo e Samira souberam o que realmente aconteceu.